Carta (Esboço) 
Lembro-me agora que
tenho de marcar um 
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que
nenhuma 
das ocorrências da vida venha 
interferir no que temos para nos dizer.
Muitas 
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto 
para reflectir a alma, a impressão da
tarde, 
o último estertor do dia antes de nos
despedirmos, 
quando é preciso encontrar uma fórmula
que 
disfarce o que, afinal, não conseguimos
dizer. É 
que o amor nem sempre é uma palavra de
uso, 
aquela que permite a passagem à
comunicação ; 
mais exacta de dois seres, a não ser que
nos fale, 
de súbito, o sentido da despedida, e que
cada um de nós 
leve, consigo, o outro, deixando atrás
de si o próprio 
ser, como se uma troca de almas fosse
possível 
neste mundo. Então, é natural que voltes
atrás e 
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te
que muitas 
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas
era tarde, 
isto é, a porta tinha-se fechado até
outro 
dia, que é aquele que acaba por nunca
chegar, e então 
as palavras caem no vazio, como se nunca
tivessem 
sido pensadas. No entanto, ao
escrever-te para marcar 
um encontro contigo, sei que é
irremediável o que temos 
para dizer um ao outro: a confissão mais
exacta, que 
é também a mais absurda, de um
sentimento; e, por 
trás disso, a certeza de que o mundo
há-de ser outro no dia 
seguinte, como se o amor, de facto,
pudesse mudar as cores 
do céu, do mar, da terra, e do próprio
dia em que nos vamos 
encontrar, que há-de ser um dia azul, de
verão, em que 
o vento poderá soprar do norte, como se
fosse daí 
que viessem, nesta altura, as coisas
mais precisas, 
que são as nossas: o verde das folhas e
o amarelo 
das pétalas, o vermelho do sol e o
branco dos muros. 
Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”