CRÓNICA: por António Lobo Antunes e por mim (ou vice-versa)
Assim como assim, este blog é mais para mim do que para vocês - não vos alimento com falsas intenções. É simpático sabermos que nos lêem, sabe bem ver no Sitemeter a multiplicação das visitas e dos comentários (sabe Deus à custa de que contrapartidas!), mas de uma coisa podem ter a certeza: tudo o que aqui chegar já passou pela minha censura. Só sai o que eu gosto. Como um puzzle, as peças são todas diferentes e, tanto podemos ter uma peça simples, amarela, com uma só saliência (as peças que ficam na periferia do puzzle, as primeiras a encaixar), como uma com todas as cores do arco-íris e toda recortada, daquelas difíceis de descobrir onde ficam.
Hoje, e porque o outro dia me perguntaram, a propósito de um post, afinal quem era a minha paixão assolapada, aqui lhe deixo uma homenagem... (se a pelo menos uma pessoa também agradar, já valeu a pena).
Tanto ruído no interior deste silêncio:
São as vozes dos outros a falarem em mim, pessoas de quem gostei, pessoas que perdi, gente que tenho ainda. Não me parece que herdei muito dos meus pais, dos meus avós: algumas coisas mais ou menos superficiais mas lá no fundo nada. Princípios, claro. Regras. O resto, quase tudo, fiz sempre sozinho. E estive sozinho nos momentos mais difíceis da vida, que sofri na carne como um cão: aquilo que, destilado, aparece nos livros, que são o itinerário de uma aprendizagem e de uma dor, a certeza da vida redimir a morte, da necessidade da alegria, de uma paz intransigente conquistada a pulso. A humilde capacidade de admirar as pessoas, respeitá-las, que tanto tempo levei a conseguir. Olhar nos olhos o que um ano destes não serei. Custa-me a ideia de não escrever, um dia. Do mundo continuar sem mim. De perder corpos, calor: o que ganharei em troca? O meu pai foi-se embora há quatro anos: percebo hoje que existia entre eu e a morte, a defender-me sem saber que me defendia e que a partir de então, quando ela tocar à campaínha, é a minha vez de abrir a porta: não quero chegar à maçaneta a tropeçar, quero mostrar-lhe a casa limpa e pronta. Dizer a quem se achar ao meu lado
– Eu já venho
e descer as escadas. Não se incomodem, não se levantem: sou capaz de descer as escadas sem ajuda até vários palmos abaixo da terra. Espero que haja sol nesse dia, um arrepio alegre nas árvores. Não se incomodem que eu já venho. Sentir-me-ão nos objectos, deixarão de sentir-me a pouco e pouco à medida que a saudade se atenua. Continuarei aqui através dos meus livros, na altura em que ninguém meu conhecido sobrar. Ficam retratos, claro, reflexos pálidos do que fui. Depois nem sequer os retratos, um nome apenas. Páginas e páginas que não imaginarão o que me custaram, a luta permanente, a dificuldade em limpá-las. Tem de passar-se as passas do Algarve para dar prazer ao leitor. Espero que Deus me conceda acabar três ou quatro textos, deixá-los prontos para que outros construam por cima, como eu construí por cima dos que me precederam. Se alguma dignidade de homem tenho deu-me a Arte. Hipócrates: a Arte é longa, a Vida breve, a Experiência enganadora e o Juízo difícil. O meu pai tinha isto num rectângulo de papel, no seu gabinete do hospital. A Arte é longa, a Vida breve. Se te sentes desfalecer pega na tua própria mão para ganhares coragem. Talvez dê resultado. Tentaste. É noite agora, corri as cortinas, estou sozinho. Faltam-me os meus amigos, falta-me o mar. Estantes cheias de lombadas, esta mesa. A esferográfica que lá vai andando aos tropeções. Os cigarros são a água com que empurro a comida das frases. Gostava de deixar de fumar, uma escravidão estúpida. Eis-me sozinho rodeado de vozes. Ninguém me pode ajudar a fazer isto. Se cair do trapézio a responsabilidade é minha e o aleijar das costas também. Conseguirei agarrar o próximo, falharei? Não me interessa narrar histórias, contento-me em abrir o coração. A minha mãe fez noventa anos em dezembro: limita-se a esperar numa cadeira. No que me respeita não vou esperar numa cadeira: a mão desenhará letras até ao fim. Esta não é uma crónica melancólica: é a obstinação do ofício que pratico desde que me conheço, afastando sempre o que o estorvava. Pagam-me para fazer o que faria de qualquer maneira e portanto sou uma criatura feliz. Na altura em que a morte, de que falei há bocado, chegar, já a venci. Amanhã na batalha pensa em mim: título do meu amigo Javier Marías. Hoje na batalha penso em vocês, não deixo de pensar em vocês. Somos tantos, cada um de nós é tantos.
Há horas cortei o cabelo: à minha frente, no espelho, um sujeito a quem cortavam o cabelo e me olhava. Parecíamos desconfiar um do outro e tive vontade de pedir-lhe desculpa por o tratar tão mal, comendo não importa o quê, dormindo pouco, não lhe dando atenção. São Francisco de Assis: confesso que tratei muito mal o meu pobre irmão corpo. Haja alguma coisa em que São Francisco e eu sejamos colegas. Lá estava o António com as madeixas a tombarem na toalha, aquela boca, aqueles olhos. Rugas: serão do espelho ou minhas? Que idade tenho? Sei lá: muda constantemente, para trás, para o lado, às vezes foge-me, outras regressa: ao cortar o cabelo estava ali, viva. E é impossível ser aquilo, é impossível ser isto. Nada em comum entre nós e o cabelo a descer para a toalha, sem cessar. Veio-me à ideia o barbeiro do meu avô, o senhor Melo, a rua 1.º de Dezembro, manucuras que eu achava lindas, tão perfumadas, tão gordas, a arrulharem: devo-lhes a minha primeira erecção consciente, pensei em pedir-lhes para casarem comigo, as duas, de uma vez. Não pedi. Quer dizer pedi sem as palavras e não me responderam, ocupadas a fazerem festinhas nos dedos de uns cavalheiros quaisquer, de joelho activamente
(gosto do activamente) encostado à perna deles. De modo que ao conhecer o desejo conheci o ciúme. E a indiferença já agora, porque não me ligaram nada. Que teria eu de mal para além de oito anos? E oito anos é um defeito assim tão grande? Ninguém sabia, claro, que eu era o escritor mais importante do mundo e maçava-me elas não o reconhecerem com um relance apenas. Um génio ao alcance do braço e as manucuras zuca zuca na fazenda dos cavalheiros. O senhor Melo, esse, entendeu-me o olhar
– O avôzinho nunca deixa que lhe toquem
e eu a achar de imediato que o meu avô era parvo. Mal entrei em casa fui à brilhantina do meu pai (um boião pegajoso) e penteei-me para trás. Só me faltava o smoking e uma actriz ao lado para ser Gary Cooper. Gary Cooper, na minha forma de ver, não andava longe de Camões, de maneira que me espantou, ao jantar, mandarem-me comer a sopa mais depressa. Não imaginava (não imagino) a mãe de Gary Cooper e Camões (uma para ambos chega)
a mandá-los comer a sopa mais depressa. Recordo-me de afirmar
– Sou melhor que Camões e Gary Cooper juntos e multiplicados por dez
e ainda hoje estou para compreender o que significava o silêncio que se seguiu.
PS - António: deu-te prazer a homenagem, deu? Ainda te recordavas desta, Antoninho? (Por mim, aqui deixava uma tua dia sim, dia sim... mas também não se deve partilhar tudo, não é? Ai, se eu contasse os nossos segredos, até as marés se desnorteariam...)
PS2 - podes comentar, que eu não ralho, nem te dou uma semana de castigo. A bem dizer, já não precisas de guardar segredo, porque eu também já não o guardo.
Não tem mais que dizer. É só isso mesmo. Sem rodeios, sem palavras caras, sem acordo ortográfico, sem peneiras, sem expectativas surreais. Sou só eu, mais uma de mim, para o mundo. Um mundo que podes ser tu ou ninguém. Amigos na mesma.
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Espelho meu, espelho meu (cozinha minha, cozinha minha...)
... Haverá algum armário de tupperwares mais desarrumado do que o meu?!
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... Haverá algum armário de tupperwares mais desarrumado do que o meu?!
E tens bom gosto!
ResponderEliminarBj
Eu até gosto do "teu" ALA, mas desde que criticou de forma pouco elegante, - para não descer ao nível das palavras que o dito cujo utilizo- o JRS, desde uns pontinhos na minha consideração. ;D Ainda assim sou obrigado a concordar que é um escritor de outra galáxia. ; D
ResponderEliminarBeijinho *